25 outubro, 2004

Henry Ford e o Telemarketing

Verdade seja dita, a onda do telemarketing nem onda é mais, é uma bolha quase especulativa. Se há um setor em expansão , posso dizer que é esse. Talvez essa expansão não seja real, mas é a esperança da massa de trabalhadores bem ou mal qualificados que não se colocaram no mercado como um dia sonharam.
O que seria esse telemarketing? Porque existir? Para atender. Aliás, esse verbo traumatiza depois de certo tempo. O atendente: uma voz, geralmente, dotada de um tom falsamente contagiante, muitas vezes sem correção gramatical e que quando ativo, forma o perfil mais chato de operador.
Realmente, toda essa estrutura parece artificial, mas será que essa impressão somente fica para quem é alvo dela? Não, não fica. Se pelo lado do “cliente” a voz é irritantemente afável, para outro há tanta irritabilidade quanto, sem muitas vezes a amabilidade dos que atendem. Isso seria uma crítica àqueles que utilizam esse serviço? Claro que sim.
Quanto ao lugar onde funciona esse mecanismo operacional, não se pode nem enredar por um caminho poético. Nada é mais tecnologicamente, friamente, silenciosamente moderno. Para quem tem medo de sair da rotina, essa é a profissão perfeita, até a toillete é precisamente controlada. O máximo da emoção seja, talvez, se tornar recordista de idas ao sanitário em menos de dois minutos.
Certo dia, atendendo, dei por mim de que estava na linha de montagem imaginada por Henri Ford no início do século passado. Estava em uma atividade altamente repetitiva, com meu ritmo de trabalho totalmente controlado por meu empregador. Logo me senti ilustre, pois nunca havia conseguido me colocar tão próxima de uma figura holywoodiana- lembrara de Chaplin e do filme Tempos Modernos . Algo, no entanto, havia mudado. Não mais teria problemas em apertar parafusos, mas em repetir, até em casa atendendo normalmente o telefone, a saudação da central onde trabalho.

23 outubro, 2004

Teorias de um homem playmobil em crise

Qual o problema do lugar-comum? Lá, pelo menos, as pessoas se identificam. Concordo que no ordinário, mas se encontram. Nele há uma identidade tão ampla, que nela se protegem muitos perfis, valorizáveis ou não. Valorizar o lugar-comum só é ruim para quem não se satisfaz com sua comodidade, com o grupo de incógnitos, ou seja, para quem gosta da solidão da originalidade. Afinal, os primeiros, ou os melhores, estão sempre solitários, entregues à batalha por sua permanência no campo da criatividade gratificante, ou melhor, da individualidade desconcertante. Sim, desconcertante, pois após certo tempo, te quebra estar excluído por mérito próprio, por uma vontade de sair do lugar-comum, tão acolhedor. Acolhedor, não por não impor a diferença, mas por disfarçar na massa, a mediocridade individual de cada um de seus componentes, pois todos, um dia, passam por isso. Assim é o lugar-comum, a camuflagem perfeita.
Em virtude de ser comum, o tal lugar não pode ser tão ruim. São muitos concluindo, refletindo, chegando a um mesmo ponto, quer dizer, o lugar-comum não é somente comum, é unânime, e isso é louvável. Realmente, o lugar-comum é muito bom, bastante econômico para quem acha que uma recessão se estende à maneira de se olhar numa sociedade onde o individual sobressai numa igualdade disfarçada. Cada um na sua, mas com alguma coisa em comum.

16 outubro, 2004

Dias errantes de um termo solitário

Volte! Dizia diariamente. “Quem sabe”, era a resposta quase automática. E assim por anos era o mesmo escasso diálogo matinal. Naquele dia, o “Volte !” calou-se e não havia pelo que existir. “Quem sabe” sentiu a aflição da incerteza pela primeira vez, não estava acostumado com o monólogo. Não se conformava com seu eco, pois percebia sua secura. Sua existência sempre fora secundária, dependia do chamado para que se afirmasse como a “última palavra”; entretanto não suportava o peso de ser a primeira de uma lista de amarguras. Acabou sucumbindo à saudade e à dor. Foi ao encontro de sua identidade além de seu mundo e quando esta mandou-o voltar pôde enfim dizer “Quem sabe” e ficar.

15 outubro, 2004

Algum romântico poderia ter escrito

Ao simples lampejo da idéia de seu corpo, o meu, assim, beira o entregar-se.
A sensação, por si só, é tão perene, que o ato é apenas um convencimento para que se acabe.

12 outubro, 2004

De gurus do sexo à freiras devassas (adoro minha locadora)

Sou de fato amante da sétima arte, mas uma amante relapsa, pois não posso dedicar o tempo que gostaria para esse deleite. Cheguei à minha locadora e me senti num Galeria Gourmet para filmes, acabei levando para casa apenas três dos doze que selecionei,e já os assisti. Esse post se destina a falar muitíssimo bem de Bill Murray em "Encontros e desencontros" e dizer mais uma vez que o cinema francês me encanta (O título francês é : "Beije quem você quiser"). Além disso, vi que há um filme de certa forma recente sobre, se não me engano, a estada de Napoleão na Ilha de Elba( chama-se Monsieur N), e que se faz uma comédia chamada o Guru do Sexo que, por sinal, tem seus atributos.

Adoro a minha videolocadora, tem Fellini, Costa-Gavras, Almodóvar.... a propósito, sobre este último diretor, recomendo um filme já antigo, chamado Maus Hábitos, sobre freiras não muito ortodoxas...

11 outubro, 2004

Um exemplo de atividade paranóico-crítica (continuando a admirar Dalí)

E os anjos desciam fumegantes da rachadura no céu que pulsava, e do sol pendia uma lágrima e dessa lágrima nascia o Homem. A água do mar parou, e junto com ela o peixe, a gaivota, o cão que brincava na areia. O vento parou, e junto com ele cata-ventos gigantes. Os estandartes desciam da rachadura celeste e os anjos ateavam fogo na terra já cor de fogo e o cenário avermelhou-se mais ainda. Acabava de ser formado o Homem.
Dessa pausa quase cósmica não passou um segundo. Num instante a fenda no céu se fechou e os anjos se apagaram no mar. Os peixes nadavam e os estandartes caíam por terra. Era leve o Homem. O vento voltou a soprar e a brisa o elevou fazendo-o sumir com o girar do cata-vento.

10 outubro, 2004

Como tornar-se um gênio (Admirando Dalí)

“..., se brincares aos gênios, tornar-te-ás um!”
Essa é uma homenagem ao pintor que experimentava o prazer supremo: ser ele mesmo.

09 outubro, 2004

(Em Off)

Apenas para esclarecer meu último post: as referências Smithianas, para quem não entendeu, referem-se a 5 músicas do The Smiths, encaixadas sob o acaso. A escolha é aleatória, e são elas, por ordem de citação:

Panic
Heaven knows I'm miserable now
Frankly Mr. Shankly
William, it was really nothing
There is a light that never goes out

Gosto desses nomes. O texto é uma brincadeira com eles.

Afluente

No peito batia a calma.
No sangue corria a água.
Enterrou os pés no lodo
E fincou a alma no rio.

Fixou os olhos no reflexo,
Quis lembrar do passado.
Tentou sorver dele a razão,
A última certeza, o que não precisava.

Mas o vento lhe puxava os cabelos,
E cada vez mais o vestido molhado pesava.
E tudo que era seco e da terra lhe importava menos,
A consciência de que era permeável, revelada.

Firmou os joelhos nos seixos,
Projetou a mente para fora,
Suspirou o alívio restante
E molhou todo o vestido.

O tecido florido corria pelo rio
E a água balançava seus cabelos,
E tudo que lhe envolvia era zelo,
Mas não fez sua mente voltar.

Despedida

As mãos começaram um movimento incerto, inicialmente lento, quase carinhoso. O desenvolver da relação foi difícil, demorado. As mãos pareciam não se aceitar.
O segundo movimento começou conturbado, um crescendo sutil, ainda desencorajado pela dificuldade. Mesmo com tantos impedimentos , as delicadas falanges dos dedos brincavam mais acostumadas, mas as mãos ainda não haviam sido totalmente convencidas, precisavam ser conquistadas. E assim foram. Perceberam depois de certo tempo, que só ali eram livres. Ficaram leves, ondulando, levando os braços, levando o corpo para bem longe.
O terceiro movimento era intenso, explorava qualquer espaço e criatividade que lhe eram permitidos. Agora, o auge impunha uma tomada de decisão quase óbvia, era isso que deveriam sempre fazer, mesmo que para conseguir a liberdade, tivessem que passar pela dor, disciplina e às vezes, pelo próprio desânimo.
Antes do fim, uma pequena lembrança do passado, de uma quase infância. A retomada de sua indecisão para engrandecer sua vitória sobre o medo. Um final agradável para seus ouvidos e uma aconchegante conclusão para sua carreira.
O velho pianista fechou a tampa do instrumento, agradeceu a ele e saiu do palco.

07 outubro, 2004

A avó e o grilo

Algum dia um grilo já entrou em seu quarto ? Num daqueles momentos de tranqüilidade e início de um sono promissor? Eu juro que até dez minutos após ter ouvido o primeiro “Griiii” (se é que isso é barulho de grilo), era o que eu pensava: absurdo. Parecia cena de desenho animado, inclusive para mim que já estava achando a situação ridícula. O “raio” do suposto grilo grilava em intervalos regulares, e eu me contorcia na cama. Aquele misto de comodismo e sono igual àquele que nos invade quando alguém pede algo e estamos deitados.
Bem, fiquei na esperança de que o grilo, tomado de bondade, parasse. Até arranhei um diálogo tímido com ele. Foi quando me enfureci e saltei da cama no melhor estilo “donald duck”. E “cata de procurar” o bicho e nada. A cena era patética. O pior foi o desfecho. Sabe o comercial do liqüidificador em que a velhinha é super esperta e tira a parte de baixo do aparelho apertando um botãozinho ? Nunca pensei que tivesse uma dessas em casa. Minha avó entrou no quarto muda, desligou o ventilador que há horas zunia, e saiu calada. O grilo simplesmente calou-se.

03 outubro, 2004

5 referências Smithianas

Ela tinha um abajour importado. Diziam os amigos que era uma peça rara. Mas William, coitado, tomado por pânico - pois era apaixonado pela amiga - derrubou-o no chão. E quebrou. Demorou ele algumas horas gaguejando para contar a verdade. Quando finalmente conseguiu, tentou atirar-se ao chão, julgando que só os céus poderiam saber o quanto miserável ele era. Um exagero, claro. A menina nem se importou (talvez os amigos tentassem encher muito a bola dela):

- Francamente, William, não foi nada. Mesmo. Existe uma luz que nunca se esvai.

E agarrou-o na mesma hora, pra que ele se consolasse. Creio que deu certo: ouvi rumores de que estavam morando juntos. Dormiam logo após o pôr-do-sol.

Introspecções

De repente ela olha pela janela e vê o mundo. Não mais aquela paisagem cosmopolita, desalinhada de arranha-céus, e sim, um horizonte aberto para seus desejos e seu futuro. Horas antes, naquele início de tarde fresca, tinha se perdido em seu olhar defronte ao espelho, ainda sonolenta. Acordara tarde. Do rosto refletido às mais diferentes formas de face bastou um instante. Num relance havia extravasado o impressionismo mais destilado. Parecia ver pessoas nela mesma, mas que rondavam um mesmo ponto, talvez uma característica comum a todas. Imagens vagas, etéreas, mas presentes. Minhas irmãs, pensou. Talvez residentes de um mesmo prédio. Fato é que por poucos minutos se manteve em pé, para depois começar a se sentir viva e acordada. Deu-se por satisfeita com o café.
Todos da casa haviam saído, o silêncio reconfortava, já que sua cabeça ainda latejava devido a noite passada. Se jogou na cama e dali observava a janela, sua grade, os móveis do quarto, começando mais uma viagem por vários lugares, idéias; tinha o hábito de se perder em pensamentos dispensáveis após horas de cansaço. Céu... E para aquele azul tão profundo, tão dela... Se sentia parte do azul, densa, dispersa, diluída em si mesma. Como se os pensamentos, os sentimentos e até a própria carne enfraquecessem o seu propósito de vida. A onda de abstração durou um bom tempo, horas talvez. Vivia agradavelmente o lilás e o alaranjado do céu, calmamente...degustando a crença em sua racionalidade imaginária, sentindo o vento esfriar. Mergulhara há muito, imaginando afogar-se com seu próprio pensamento...Não! Sacudiu a cabeça e foi ter com o lápis, mas este não se manifestava. Precisava escrever. Embriagada de querer coisa alguma, de inércia. O torpor do ócio era aconchegante até o alarme da consciência. Maldita! Agora tinha que se sentir útil. Hipocrisia? Mostrar serviço para si mesma, se convencer de que era indispensável.
Resolveu telefonar. Qualquer um, qualquer problema alheio que aumente a conta telefônica e que garanta um sono tranqüilo no final do dia. Para, e olha o telefone, se contém. De impulso se xinga, inicia um auto diálogo na tentativa de se corrigir até que tomada por surpreendente objetividade, estabelece planos - a maioria a longo prazo- certa de que os realizará. Cheia de confiança olha a janela novamente, e esta se torna um espelho, mágico possivelmente; mostrando-lhe impressões, distorções que forçosamente lhe indicam a concretização dos planos ainda há pouco inventados. Olha a janela, as grades vão sumindo, os prédios vão sumindo, meio que difusos; olha pela janela e vê o seu mundo.

Bastidores da Criação

Antes de sua queda, o Diabo ainda como Anjo perguntou a Deus:
- Por que criar a Terra para o Homem?
E Deus, envolto por sua sabedoria respondeu:
- Para que continuemos a ter o Céu.