29 maio, 2005

Briguinha de Guarda-Chuvas no Engarrafamento

"A Insustentável Leveza do Ser" é O livro. Ele é romance, história, filosofia, reflexão, política, metafísica... Se ele não existisse, o mundo estaria menos completo. Tudo bem, deixemos a babação. Mas em um trecho desse livro, uma das personagens sai de casa em um dia de chuva, e se depara com um monte de outras pessoas disputando o espaço urbano para seus guarda-chuvas, uma ambição ridiculamente prosaica levada ao extremo da seriedade. Os cidadãos desconhecidos olham os "concorrentes" de cara feia, não deixam os outros passarem, porque se não sofrerão com os pingos d'água. E a tal personagem fica a observar, cheia de raiva, como aquelas mesmas pessoas poderiam estar tão unidas na época da guerra, em que ela própria ajudara na defese do país. Agora, parecia que nada mais existia, apenas a honra de se manter seco.

Outra história: vinha eu em meu ônibus matinal, atrasada, como sempre, o que foi intensificado por um engarrafamento na Pinheiro Machado. Não, dessa vez era um engarrafamento de verdade, com olhadinhas nervosas dos passageiros e fofoquinhas de "uma árvore caiu", "alguém foi atropelado" e tudo. Mas o motivo era de se esperar: uma manifestação de algum setor desprivilegiado qualquer da sociedade em frente ao palácio do governo. O que me impressionou foi a quantidade de reclamações de baixo nível contra aquelas pessoas. Se fosse uma árvore, droga de vida; se fosse chuva, droga de vida; mas como era uma manifestação, droga de gente maldita atrapalhando minha vida.

A relação entre as duas historinhas é vaga, e eu não sei se de fato existe. Só sei que na hora me veio isso à cabeça essa parábola dos guarda-chuvas. Enquanto aquelas pessoas, tão desprivilegiadas quanto as que reclamavam delas, no ônibus, estavam tentando lutar por seus direitos, os outros, embrulhados que estavam no seu interesse imediato - "vou chegar atrasado", "vou levar uma bronca", "vou almoçar mais tarde" - simplesmente condenaram os outros. Briguinha interna. Idiota, burra, individualista. Não importa se aquilo vai fazer efeito ou não, ou se existem outras formas de buscar melhoras. O que irrita é essa falta de visão, de se ver como igual, de ver que eles, pelo menos, estavam fazendo alguma coisa.

7 Comments:

Blogger Edson said...

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2:49 AM, maio 30, 2005  
Blogger Edson said...

Que coisa. Eu também adoro "A Insustentável Leveza do Ser". (Hmm, aquele endereço que eu inventei pro meu blog é pra lá de denunciador, não?) Mas nem lembrava desse trecho que você citou. Obrigado por me fazer relembrar dele, Sheila.

E olha, já observei muito essa estupidez indivudualista que você fala. Já vi um carinha querendo passar com o seu carro por cima de pessoas que faziam um protesto. Já vi alguns alunos da minha faculdade reclamando de uma discussão importantíssima sobre a Universidade que acontecia na lista de e-mails do curso, porque "Ora, droga, eu tenho e-mails demais pra verificar na caixa de entrada". Triste.

Mas antes que a minha alma tão envelhecida (apesar dos meus vinte anos) ache que essa estupidez é o padrão geral dos seres humanos, como se todos fôssemos míopes e só alguns pudessem olhar um pouco mais adiante, lembro de quando fiquei preso em um longuíssimo engarrafamento e percebi que, apesar de todo o contratempo, todos que estavam no ônibus olharam com enorme respeito as reivindicações dos sem-teto que bloqueavam a estrada. De tantos projetos e tantas iniciativas de várias pessoas que acham que há algo além da honra de manter seu próprio corpo seco quando todos estão sob a chuva. Sabe, são essas pessoas que ainda me fazem olhar com alguma benevolência pra esse nosso mundinho velho, cada dia mais sem porteira...

2:52 AM, maio 30, 2005  
Anonymous Anônimo said...

É, eu não brigo por espaço, mas fico girando meu guarda-chuva e espalhando a mesma água da qual ele me protegeu para todos os lados, em cima das pessoas... não chego a acertá-las, mas é divertido ver suas caras de 'essa água vai bater em mim'... é...ok, o post não foi sobre guarda-chuvas, certo? Que por acaso, se diz paraguas em espanhol! Não é um nome divertido? Eu acho!
O livro é mto bom msm... Mais uma coisa que fui conhecer após suas super indicações, do tipo:'merda de livro/música/filme perfeito' ou 'eu gostaria de ter escrito/feito', ou ainda 'tipo, é mto bom'... :)
Eu, dentro de toda minha pós-modernidade, consigo entender as pessoas individualistas e burras. E as que 'fazem alguma coisa' tb. Não vou desenvolver o tema. É.

9:02 PM, junho 21, 2005  
Blogger Leandro said...

É de se admirar que estas pequenas abelhinhas que se revoltam levem comentários enfurecidos para casa. Pelo menos as pessoas ainda estão se enfurecendo.

Nossos sentimentos estao sendo minados, reduzidos, enclausurados pelas normas construtivas da sociedade atual. Compramos livros para influenciar pessoas a fazerem o que nós queremos. Lemos revistas de como parecer "melhor" do que realmente somos. Ouvindo na tevÊ um especialista dizer como ganhar mais dinheiro como o que se tem e ficar mais feliz.

Nao sentimos mais, agimos pelos programas. Nao sentimos, nao somos mais humanos, somos massas programadas para falar, pensar e agir da forma certa nos momentos certos.

Infelizmente ainda existem umas pessoas que se revoltam e acabam atrasando o programa da rotina.

:P

9:02 PM, junho 22, 2005  
Blogger Leandro said...

sheila, tentei dizer que as pessoas cada vez menos sentem de verdade seus sentimentos, ficando cada dia que passa mais longe da essencia delas mesmas.

as pessoas se enfurecem gracas a um programa pre definido de que suas vidas sao mais importantes. mas pelo menos elas ainda se enfurecem.

nao vejo com olhos mais desconfiados o dia em que as pessoas nem mais se enfurecerão. ficarão paradas esperando o que for acabar para entao seguir suas vidas.

estamos ficando estereis de nossos sentimetos. sem percebermos. estamos nos endurecendo. eh a nossa sociedade atual :P

nao sei se deu, agora, para entender! bjao

1:22 AM, junho 24, 2005  
Blogger Leandro said...

ok. quem sou eu para discutir com a sua sabedoria magnânima e infinita!

9:15 AM, junho 27, 2005  
Anonymous Anônimo said...

rsrs, nossa, q acalorados por aqui...
Gostei do post, adoro "A Insustentavel", quero re-ler em breve, mas enfim, eu acho que o tipo de comentario que você ouviu no onibus se deve a não termos uma noção exata de nação, de unidade, de um todo. Nunca passamos por uma guerra que nos unisse, seja real ou simbolica... Não?

Espero que minha viagem seja minima, rs! Prazer em conhecer o blog, até!

1:40 PM, agosto 22, 2007  

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