24 janeiro, 2005

Temor e esperança (a questão da continuidade)

Meus filhos serão bons, assim espero, assim quero acreditar. Pelo menos em algum momento do dia penso neles. Não imagino o rosto, não tento adivinhar a voz, nem tenho um pai para eles. Apenas sinto a futura existência sem ao menos conseguir quantificá-la. Tento sempre procurar a origem dessa vontade, que não parece minha, nem de ninguém (talvez seja deles, dos próprios filhos).
É rápido, sai como um soluço, mas não de choro, e sim, de fome pela continuidade. Às vezes acredito que seja por instinto somente, às vezes por solidão, ou por arrependimento. Uma tentativa de corrigir os próprios erros antes que eles aconteçam novamente. Pretensão a minha de achar que tudo será igual. Ainda bem que não. Começo a crer que minha maior satisfação será encontrar na diferença as qualidades que não tenho e acrescentar as que descobri.

22 janeiro, 2005

Inspirado em "Hallelujah"

Não morava sozinho, mas a casa estava vazia. Chegou silenciosamente, e quando percebeu a ausência dos outros entrou mais aliviado - mas um pouco mais triste também. Se é que se pode chamar de tristeza aquela sensação. Talvez melancolia. Aquilo que vicia, aquele que suga, geralmente não é a tristeza. Sentia algo não doído, mas um pertencimento e reconhecimento a todos os Jesus & Mary Chains, Elliott Smiths e Morrysseys da vida. Era um deles. Sim, só que sem glamour. Quando entrava em casa, até a chave parecia não se acostumar a seu lugar, pois que ele tinha que ajeitá-la de um modo todo especial para que abrisse. Só então a porta rangia, e o seu espaço o acolhia, com seus mesmos móveis, mesmo cheiro, mesmo ar, mesma densidade.

Jogou os objetos que tirou dos bolsos sobre qualquer cadeira. Olhou em volta, e procurou o que comer. Parou com o sanduíche a meia distância dos dentes para perceber como estava tudo tão insuportavelmente parado ali. Parecia inconcebível que as pessoas se movimentassem lá fora. Parecia surreal que do outro lado do mundo guerras estivessem acontecendo, festas ocorressem em sua própria cidade, ou mesmo que o vizinho utilizasse o liquidificador no momento. Mordeu o sanduíche até um pouco desacostumado, resistente ao mexer dos músculos.

Ficou ali parado, encostado na pia da cozinha, a observar o nada. Coisa alguma transparecia nos olhos, na testa, na posição do corpo. Estava a sós com o silêncio e a ausência de pensamentos. Nem frio sentia, nem calor. Talvez seus sentidos o tivessem abandonado. Ressoava em sua mente a música do filme que tinha visto na semana anterior. Um instrumental em tom menor, um som leve de cordas, uma melodia que se repetia, devagar, esvanecendo, diluindo, até formar-se de novo seu início. Pôs-se a observar os milímetros do cômodo, devagar, até chegar à sala, como se tomando cuidado para não deixar cair algo de frágil que carregava. Tinha medo de esquecer a música. Sentou na única poltrona da sala. Em frente ao único armário. Pensou em escrever para Ela, contar sobre o filme, sobre aquela sensação, contar sobre a música, e sobre como era bonita. Mas... ela nem se importaria. Acharia bonita, nada mais, e nem se comoveria com o tom menor das cordas que se repetiam na memória dele.

Não escreveu nada. Não comeu mais nada. Depois do sanduíche, esfregou levemente as mãos, deixando os migalhos caírem descuidadamente no chão. Não falou nada para si mesmo, não ligou televisão, nem rádio. Continuou apenas ali, esperando não sabia o quê. Talvez que a música parasse de repetir na sua cabeça. Mas continuava, e ele apenas deixou-se ficar.


À la Andy Warhol

Nothing is wasted, only reproduced, canta Damon Albarn na clássica de discos "Girls & Boys". Teoria parecida repetida à exaustão na culinária: "Tudo se transforma". Infindáveis são as regravações de músicas já aprovadas pelos ouvidos do público - algumas louváveis, outras apenas repetitivas. A teoria não se manifesta só nisso, claro. As tradicionais "influências" estão aí em cada resenha de disco ou banda pra confirmar que algo novo é coisa do passado, o que importa mais agora é fazer o mesmo de forma bacana - pelo menos com uma cara parcialmente nova. Bandas novas como Libertines e Interpol ressucitam The Clash e Joy Division, respectivamente, sem serem por isso consideradas medíocres. Também, bandas que fazem "apenas" um rock bem feito se saem bem na fita, agradam, e nem por isso vem alguém perguntar: "E aí, o que você acrescentou na história da música pop?".

Legais também são as coincidências - verdadeiras ou intencionais. Todo mundo já reparou que o início de "Are you gonna be my girl", do Jet, é idêntico ao da fofíssima "A town called malice", da veterana The Jam (música essa, aliás, que foi som para uma cena feita na medida pra cativar o público cult no filme Billy Elliott. E sim, eles conseguiram). Tocou até em uma boate em algum dia passado desses: primeiro a nova, depois a antiga, as duas seguidas, de propósito. Outro dia, teve "It's my life" do No Doubt, e pra refrescar a memória a mesma "It's my life", só que do Talk Talk (cá entre nós, que não teve nada de novo na regravação, o único mérito foi fazer as pessoas verem como a bendita música é bacana pacas!). E ainda outro dia, sessão infindável em overdose de "Heroes", com 3 versões diferentes coladinhas, inclusive na voz original do (Ave!) Bowie. nessas horas dá vontade de ser DJ. Semelhança tem também em "Mr. Brightside": não lembra nitidamente "Born Slippy", Underworld, que foi tema do filme classiquinho de juventude pseudo-revoltada Trainspotting?

Pois é, a música está cheia dessas referências. Não só na própria música, até nos próprios nomes das bandas. Exemplos clássicos são Radiohead, cujo nome é o mesmo de uma cançãozinha chata dos não-chatos do Talking Heads ("radio head... the sound of a brand new world" - adequado, não?), e Rolling Stones, da música do Bob Dylan "Like a rolling stone".

E pra quem quiser se divertir com charadas, bastar pegar "American Pie" (do Dom McLean, não da Madonna, argh!) e ir decifrando as referências. Nada de dicas por enquanto!

09 janeiro, 2005

Disto aqui

Dentro em breve parto disto aqui
E o quanto antes alcanço o Tempo
Peço a ele que não corra e que esmoreça
Que não acelere, cruel, a volta para o que não sou
Para o que não quero ser

“Disto aqui” é tudo o que não pode ser
Habitual, corriqueiro, cotidiano
E o meu pedido é para que a rotina fique
Fora da vida, da minha cabeça, perdida no Tempo
Mas o Tempo não pode fazer nada

E em breve serei eu a esmorecer
E tragada por nada que é “disto aqui”
Sorverei dias constantes em sua velocidade
Assim, quisera eu ter todos os dias a correr
No tempo que não esmorece jamais

Ficar sem perceber a passagem desse Tempo
Tão perceptível em sua lentidão
Sentir que tudo é “disto aqui”
Tudo tão rápido por que é bom
E por que não é cotidiano

O “disto aqui” é o que me agrada
É o que não percebo por que não me dói
Por que passa tão rápido quanto os bons momentos
Que minha lembrança luta para o Tempo não apagar
O “disto aqui”, para mim, está fora do Tempo

06 janeiro, 2005

Não te deixarei, não!

O fundo do leito parece agradável à folha que da mata na margem cai. Ela nasce com viço e se alegra de cumprir sua função, mas como a flor do poeta romântico, não consegue pensar-se sem aquela água, sem aquela correnteza. E assim, toda a sua existência reúne preces e trabalho árduo, pois somente com este trabalho acha que não correrá o risco de sair de perto de seu rio. Outras folhas se deixam conquistar pelo vento e acabam na terra, esperando que outro golpe de ar passe e as leve, mas esta folha não se deixa dissuadir por uma brisa galante, prefere o rio, que perene lhe assegura presença constante. Por mais que o vento possa levá-la longe, de que adiantaria ficar sem ele algum dia? O rio não se afastaria pois a tragaria e a manteria sempre com ele. Então não adianta por nenhum momento a vista que tem de sua futura companhia, enxerga ao longo de sua vida útil para aquela mata o percurso daquele que um dia a guardará com tanta dedicação. Esta folha não pede: Não me deixes não! Esta folha afirma que não o deixará, pois sabe que a promessa já é implicitamente recíproca. Que o rio será tão fiel ao recebê-la quanto ela ao escolhê-lo e que pelo tempo que puder a manterá no movimento de sua correnteza como quando sentiu o primeiro chacoalhar do galho onde brotou.

05 janeiro, 2005

E a solidão elevou a areia ao céu

A solidão me agrada tanto quanto uma brisa leve em dia de céu azul. Por vezes a mesma imagem me toma o pensamento: um rochedo imenso e cor de fogo, um céu tão azul e o vento cantando nas areias fugidias da terra. Do alto daquele rochedo eu salto, após ter corrido como se estivesse a preparar uma decolagem. Naquele momento que dura o quanto meu rochedo tiver de altura, sou eu e o atrito do ar que por mim é sensorialmente ignorado. Não há queda e sim, entrega de meu corpo, naquele meio que me revive, à liberdade plena que busco incessantemente.
Outrora escrevi poesia melancólica o suficiente sobre isso, e ainda não sei se abandono a melancolia por completo. O assunto me vem à mente como um rompimento em meu espaço esgotado, o espaço em que vivo, e recorda minha essência livre a qual sufoco diariamente. Trato disso como algo a ser superado, mas tenho visto que o que me é matéria de existência é justamente superar a necessidade de sublimar o que deve ser meu eixo. Então paro madrugadas inteiras a buscar uma maneira de coabitar esses eixos tão diferentes. Talvez escreva mais poesias até descobrir essa tal forma, ou mesmo estabeleça a permanência da entrega de meu corpo ao rochedo, ao ar e à queda. Ser tão fugidia quanto a areia que do vale sobe ao rochedo e desce e paira sem ter amarras em algum tempo ou espaço. Hoje, a idéia de juntar-me ao vento me soa tão cálida quanto a idéia de negá-la, como já ocorrera. Eram tempos tão atrelados ao que nada me era, tudo me escapava e eu me perdia, e era tudo tão concreto. A inconsistência da solidão e a abstração do que me pesa na alma me elevam até onde a areia da terra pode ir no céu.