31 dezembro, 2004

Prosa de vó do sertão (sem final feliz)

José num quis ir a luta como seu tio fez, via o dia sair de trás da serra e cortá o azulão por meses até que esses meses virassem muitos anos. Não trabalhava como homem muito menos como o jumento do Seu Malaquias. Esse sim, pobre animal que num poderia de saber que merecia mais agrado que aquele pobre diabo.
José acabou tomando conta do cemitério da cidade, quer dizer, cidade é elogio por demais pra aquela rua que cortava o mato ralo daquelas bandas. – Ô vó, mas conta do jumento. Quem era Seu Malaquias?
Sim, claro, Seu Malaquias já quis cortejá sua velha avó. Sujeitinho folgado aquele, cheio das avareza na alma, mas era afogueado que só. Bem, o fogo do homem não é procês. O jumento dele era talvez o que mais trabalhava em toda a cidade, carregava pedra, grão, e dizem, até um safado que Seu Malaquias teria dado cabo.- Oh! Verdade, vó?
E eu sei? Sabem como é, não? Mas como eu ia dizendo, o jumento merecia era agrado, e num deram agrado pra ele, morreu com as tripas na estrada depois de ter passado um daqueles caminhão, já viram um?- Não senhora.
Mas o bicho é bonito, tem quatro rodas e faz um barulhão pra modo de chamá a cidade toda pra bem perto. Vem vendendo gás, as vezes vende coisas da cidade lá de longe, mas quando vem com coisa cara, num faz boa venda. Numa dessas vez é que seu tio foi embora com ele, pra cidade lá de longe, disse que ia voltá bem na vida, mas não voltô. – E lá na cidade, vó? O tio tá rico?
Fosse esse o destino de toda essa gente que sai daqui, eu já tinha mandado ocês pra lá, mas não. Num carece de cruzar esse chão todo pra trabalhá que nem o jumento de Seu Malaquias, morrê de fome e acabá morto na estrada, que nem seu tio. Aqui tem o José pelo menos pra cuidá de ocês no cemitério.

28 dezembro, 2004

Sobre o LugarComum

O mundo é um clichê. Guerra, fome, heróis x vilões, mesmos medos, mesmos erros, mesmas coisas, sempre, sempre, sempre. Sentimentos previsíveis, situações repetidas. Por isso que todo mundo se dá conselho mutuamente. Tudo acontece mais ou menos com todo mundo, só os detalhes mudam. E as exceções, aquelas que às vezes dão no jornal ("mulher é devorada por crocodilos no zoológico e abraça os animais enquanto é morta pelos animais"), só confirmam a regra. Tudo é clichê.

A começar por mim. Meus problemas são todos óbvios. Por mais complexo que eu tente fazê-los parecer, sempre milhões de pessoas já sentiram a mesma coisa: inveja, raiva, alívio, etc, etc, etc. É só não ser muito específico. Aí a gente olha ao redor... todo mundo igual. Um monte de cabecinhas andando pra lá e pra cá, com suas rotinas parecidas, tentando fugir disso - porque, sim, clichê é um saco. E se reconhecer isso dá uma crise existencial. Por isso que uma das fugar na auto-piedade é a tendência de achar que "ninguém me entende". Pois é, não entende mesmo, porque todo mundo é burro - e aí está mais um clichê - pra perceber que são sempre as mesmas histórias. E o Bush? Que clichezão... parece saido dos Power Rangers, de tão caricato. Ele e o Saddam, o Blair, o Lula... e o Yuschenko? Hm... boa pergunta. Eu diria que minha fascinação por países pouco comentados na mídia impede uma análise menos parcial.

Não adiantava tentar fugir, porque todo mundo que evita o clichê cai no mesmo: "quero fazer algo diferente". A tentativa de fuga já estava prevista no sistema. Não o anula, mas o reforça.
A vida é uma interminável repetição, uma novela mexicana disfarçada. Às vezes parece que é tudo produzido na Matrix, ou criado para o Show de Truman, de tão inesperadamente artificial. Eu esperava algo mais. Mas não posso negar que ainda seja ... interessante.

24 dezembro, 2004

Flagrantes da psiqué urbana

Ela queria saber por que se tinham olhado durante toda a viagem e nada mais acontecera. Que diabos ocorreu naqueles minutos? Quantos foram afinal? Passou todo o percurso do Metrô olhando para um indivíduo sentado no banco laranja, que não cedeu lugar a uma senhora grávida. Inconscientemente reconheceu o terno, a gravata, o sapato, o jeito de quem tem um humor afiado, ácido. Bem, era um partido, e que partido! O fato daquela figura ter causado tanto frisson estava todo na sua tara por ternos e executivos. O pior: ela tinha consciência disso. Nunca idealizou fardas, uniformes, professores de ginástica, apenas o terno. De certo que pormenores se faziam presentes, já que nunca quis se convencer de que os ombros largos eram resultado de ombreiras. O que não esperava era a reciprocidade na mesma medida. Como assim? Se olhavam, e não “ela olhava”. O rapaz a percebia tão quieto quanto, e assim as estações passavam. Ele olhava a saia, a meia, até os livros. Só um detalhe, ele sim gostava de uniformes, no entanto, eram mochila e chiclete que lhe chamavam atenção. No decorrer do trajeto até a estação da escola havia uma ninfeta e um pedófilo no vagão, seguros pela razão de cada um? Talvez. Provável tenha sido a conversa do senhor idoso com a jovem, e da grávida com o sujeito, o mantenedor do equilíbrio, quem sabe, moral daquele trem.
Enquanto a jovem estudante saía para suas aulas, entrava um mulato. Costas grandes, sandálias gastas, bermuda e camisa surradas. Andava estranho, havia um volume na lateral de sua bermuda. Sua aparência provocou receio daqueles que estavam em mais um percurso para mais um dia de trabalho, numa cidade violenta e desgastada, dentro de um Metropolitano que graças ao bom senso colocara seguranças nos vagões. O homem ao perceber que as portas haviam se fechado elevou seu tom de voz ríspido e em seguida, não pôde soluçar, pois havia sido tragado pelos braços dos guardas. Cidadãos de bem sentiram-se seguros até que no desenrolar da cena viram que o volume na bermuda era devido à bolsa de urina de um pedinte doente que acabara de sair da fila de uma emergência de hospital público e precisava comprar o remédio da receita. Mal-estar. O mendigo praguejava no chão e foi levado para fora pelos seguranças, quando de outra estação. Era necessário tirar da mente dos honrados trabalhadores as imagens que poderiam interferir em sua contribuição para com a sociedade. Esta mesma que de quando em quando lhe expunha, inconscientemente, suas mazelas.
Um metrô sorteado com tantas amostras peculiares. Seria? Ou havia detestavelmente, normalidade na freqüência desses eventos? Havia um advogado a caminho de mais uma jornada de supressão da justiça, atraso lamentavelmente burocrático e atos forçosamente corruptos. Contudo era digno, o “bacana”, merecia respeito. O mendigo importunava os sentidos, mas o corrupto não era acusado pela razão alheia.
Na estação final, só se constata o fim da linha, a certeza de voltas e idas contínuas de muitos vagões como este.

05 dezembro, 2004

Janela de hospital (e outras também)

Não deixam de cair as lágrimas do rosto na janela. Não deixam de traçar caminhos no hálito condensado na janela, e assim até embaixo se entortam. Um zigue-zague parado no tempo do rosto na janela. O frio é certo e parece durar mais do que gostaria, e assim a janela fica, sempre um amparo para lágrimas de mais um rosto a aguardar. Aguardar o início, o fim ou a continuação de uma ou mais vidas. E quando se fizer quente o tempo, ainda sim, timidamente, poderão traçar mais uma vez as lágrimas, seus tortuosos caminhos. E uma testa pode vir a apoiar-se, quem sabe? Ou mãos poderão repousar de uma súplica, em sua superfície constante e lisa, que fria absorve o calor das emoções. Um figurante invisível e tão necessário por isso. Pode ser, na dor, o fio para a lucidez, por mostrar através de si, veracidade. E pode ser o primeiro meio, onde visualmente se transmite para o mundo, o extravasar do contentamento. E para os que se habituam, simplesmente permite algum deslumbrar imaginário ou real (que seja!) de anseios comedidamente não revelados. Ali ficarão por tempos a transpassar realidades.

04 dezembro, 2004

A modelo

Me torça e ajeite a onda do cabelo.
Não há de preocupar-se em me forçar;
Então me olha e calcula o que despir.
Com que razão? Trato de ficar crua,
Nua como superfície do mármore.

Mão para trás e pescoço tombado
Me posiciona como noutro dia.
Expôs um seio e ocultou o outro,
Outra mão sobre ele. Agora sofra!
A expressão de desamparo e dor.

E a pedra também passa a sofrer
Ainda brutalmente trabalhada.
A mão não quer mais ocultar o seio,
Nem a nuca se manter intocada.
Sofra! Reata o seio à mão dormente.

Agora lisa, minha forma branca
Sofre para qualquer observador .
Quem torceu ao menos me pagou bem.
E ainda pude sentir como tocou
O mármore onde me aprisionou.