24 dezembro, 2004

Flagrantes da psiqué urbana

Ela queria saber por que se tinham olhado durante toda a viagem e nada mais acontecera. Que diabos ocorreu naqueles minutos? Quantos foram afinal? Passou todo o percurso do Metrô olhando para um indivíduo sentado no banco laranja, que não cedeu lugar a uma senhora grávida. Inconscientemente reconheceu o terno, a gravata, o sapato, o jeito de quem tem um humor afiado, ácido. Bem, era um partido, e que partido! O fato daquela figura ter causado tanto frisson estava todo na sua tara por ternos e executivos. O pior: ela tinha consciência disso. Nunca idealizou fardas, uniformes, professores de ginástica, apenas o terno. De certo que pormenores se faziam presentes, já que nunca quis se convencer de que os ombros largos eram resultado de ombreiras. O que não esperava era a reciprocidade na mesma medida. Como assim? Se olhavam, e não “ela olhava”. O rapaz a percebia tão quieto quanto, e assim as estações passavam. Ele olhava a saia, a meia, até os livros. Só um detalhe, ele sim gostava de uniformes, no entanto, eram mochila e chiclete que lhe chamavam atenção. No decorrer do trajeto até a estação da escola havia uma ninfeta e um pedófilo no vagão, seguros pela razão de cada um? Talvez. Provável tenha sido a conversa do senhor idoso com a jovem, e da grávida com o sujeito, o mantenedor do equilíbrio, quem sabe, moral daquele trem.
Enquanto a jovem estudante saía para suas aulas, entrava um mulato. Costas grandes, sandálias gastas, bermuda e camisa surradas. Andava estranho, havia um volume na lateral de sua bermuda. Sua aparência provocou receio daqueles que estavam em mais um percurso para mais um dia de trabalho, numa cidade violenta e desgastada, dentro de um Metropolitano que graças ao bom senso colocara seguranças nos vagões. O homem ao perceber que as portas haviam se fechado elevou seu tom de voz ríspido e em seguida, não pôde soluçar, pois havia sido tragado pelos braços dos guardas. Cidadãos de bem sentiram-se seguros até que no desenrolar da cena viram que o volume na bermuda era devido à bolsa de urina de um pedinte doente que acabara de sair da fila de uma emergência de hospital público e precisava comprar o remédio da receita. Mal-estar. O mendigo praguejava no chão e foi levado para fora pelos seguranças, quando de outra estação. Era necessário tirar da mente dos honrados trabalhadores as imagens que poderiam interferir em sua contribuição para com a sociedade. Esta mesma que de quando em quando lhe expunha, inconscientemente, suas mazelas.
Um metrô sorteado com tantas amostras peculiares. Seria? Ou havia detestavelmente, normalidade na freqüência desses eventos? Havia um advogado a caminho de mais uma jornada de supressão da justiça, atraso lamentavelmente burocrático e atos forçosamente corruptos. Contudo era digno, o “bacana”, merecia respeito. O mendigo importunava os sentidos, mas o corrupto não era acusado pela razão alheia.
Na estação final, só se constata o fim da linha, a certeza de voltas e idas contínuas de muitos vagões como este.

6 Comments:

Blogger Manoela said...

Os elementos atípicos, afinal, são o que tornam tão típicos os nossos dias. Fosse o dia coberto de normalidade, seria incomum, algum fenômeno.

7:38 PM, dezembro 25, 2004  
Blogger Madame P. Mandrack said...

Verdade, Manoela. Vc pegou o que eu quis expor, esses aspectos atípicos de nossa sociedade.
bjinho
Ah..obrigada por visitar o blog! volte sempre!

11:57 PM, dezembro 25, 2004  
Anonymous Anônimo said...

Oi Maria, gostei muito do seu post! Andou se inspirando no metrô? Eu tava pra te falar um coisa legal: to trabalhando de telemarketing agora. Não é de banco não, é de celular. Tá maneiro. Tem muita gente ****, mas tudo bem. Eu ainda não desisti da idéia de fazer um blog com as ligações mais inusitadas. Até agora não rolou nenhuma, mas se rolar, a gente podia juntar e postava nóis duas. O que acha? Vc conhece outra pessoa que queira participar? Feliz Natal e um Bom ano Novo!

9:04 AM, dezembro 27, 2004  
Anonymous Anônimo said...

Olá!
Adorei este texto! Mto bom! Sua forma de escrever me lembra a do meu namorado q é jornalista. Passarei aqui mais vezes!
Bjocas
Karen
(http://longocaminho.fotoblog.uol.com.br)

1:37 PM, dezembro 28, 2004  
Anonymous Anônimo said...

Muito bom! Não só pelo tema, expondo a hipocrisia humuna que julga pela aparência e vive de aparência. Mas também pelo modo que conduz a narrativa...
bem criativo!
Beijos
J.Isaac

8:26 PM, janeiro 07, 2005  
Blogger Madame P. Mandrack said...

Miguinho você é um fofo, sempre atencioso e gentil.
Gosto muito quando vem aqui na fabrica.
beijos
Obrigada a todos também pelas críticas positivas e construtivas.
bjo e abraço

8:51 PM, janeiro 08, 2005  

Postar um comentário

<< Home